O PAPEL DO ESTADO, DA REGULAÇÃO E DO TRABALHO PARA TERMOS MAIS QUALIDADE DE VIDA
O último painel temático do 9º Congresso da Fenafar e do 6º Encontro Nacional de Farmacêuticos no Controle Social da Saúde “Mais qualidade de vida para o povo brasileiro! Trabalho farmacêutico e as atividades econômicas da profissão farmacêutica: formação, regulação e mercado”, discutiu os desafios do ensino de farmácia e o papel da regulação na garantia da valorização profissional e do direito à saúde.
Para discutir esses temas a farmacêutica, ex-assessora da Anvisa e assessora técnica do Conselho Nacional de Saúde, Maria Eugênia Cury, e a coordenadora geral da Escola Nacional dos Farmacêuticos e professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Silvana Nair Leite.
Maria Eugênia deu início ao painel afirmando que a categoria precisa buscar, na sua ação cotidiana, refletir sobre “qual é o papel do trabalho farmacêutico para contribuir com essa perspectiva de dar mais qualidade de vida para o povo brasileiro?”.
Ela situou que no atual momento político do país, o fazer farmacêutico tem que estar em sintonia com a “construção de um projeto de desenvolvimento para o país, voltado para atender os interesses da população brasileira e dos setores mais carentes, um projeto de caráter democrático com a participação do povo, que permita que a sociedade tenha protagonismo na sua cidadania”, disse.
Esse projeto, continua Maria Eugênia, tem que ter forte conteúdo nacional. “Precisa estar a serviço da soberania nacional, porque desenvolvimento sem soberania não fortalece a nação; defender o patrimônio nacional como elemento essencial para a garantia da soberania e dos direitos”.
Para a farmacêutica, que presidiu a Fenafar entre os anos 2003 a 2006, esse projeto nacional de desenvolvimento precisa reestabelecer o equilíbrio entre os poderes da República. “A defesa das instituições do Estado é fundamental para dar condições para o processo democrático”, afirma.
E, ainda, é preciso qualificar esse projeto a partir dos seus objetivos econômicos, que devem buscar o progresso social, a geração e distribuição de renda a partir da retomada do crescimento econômico que reduza as desigualdades sociais e regionais, com valorização do trabalho, garantindo ao trabalhador um papel protagonista nesse processo. Para tudo isso, afirma, “o Estado tem que ser o indutor do crescimento econômico, não apenas para a iniciativa privada, para transferir recursos públicos para o mercado, mas que seja uma indução com alocação de recursos a projetos e políticas que estejam a serviço do povo e para os interesses coletivos”.
Maria Eugênia relaciona esse papel indutor do Estado com o seu papel regulador das relações sociais e econômicas. Para isso, ele fez uma analogia da regulação com a faixa de pedestre. “O carro tem um poder maior que o pedestre no fluxo urbano. A faixa de pedestre é a intervenção do Estado no trânsito para garantir o direito ao polo mais vulnerável – o pedestre, na circulação das ruas. Ou seja, é um modo de ação do Estado para evitar que determinadas práticas do setor econômico — que tem mais poder com relação aos usuários — ultrapasse limites. É a ação do Estado para assegurar os direitos dos setores mais vulneráveis e que parte do princípio da equidade”, explica.
A regulação em Saúde
Entre as muitas atribuições do Estado na regulação da Saúde, Maria Eugênia destacou três que considera estruturantes: “Temos que ter clareza que a ausência da intervenção do Estado na Saúde pode implicar riscos para outras pessoas, daí ela é fundamental para a segurança e o direito de todos e todas; ela é necessária para a proteção dos mais vulneráveis, uma vez que quem conhece os produtos tem mais poder do que o usuário que é hipossuficiente; e a regulação é importante para controlar os riscos ao próprio consumidor, em especial quando esse risco já está socialmente incorporado e causa danos significativos”. Além disso, ela destaca que a regulação é para todo o sistema, público e privado, e precisa estar integrada com as macro políticas sociais do Estado.
Outro elemento importante é a Política Nacional de Vigilância em Saúde, que está em construção a partir da realização da 1ª Conferência Nacional de Vigilância em Saúde, e que está “centrada no elemento estratégico que caracteriza o SUS que é a proteção. Nós só vamos conseguir trazer a saúde como elemento do desenvolvimento, quando fortalecermos o território como espaço para o debate das políticas de proteção, de analise dos riscos à saúde em um determinado território, onde a comunidade seja sujeito e protagonista das ações de saúde”, diz.
Ao final, ela retoma a questão apresentada pela presidente do Conselho Estadual de Saúde do Espírito Santo na abertura do 9º Congresso: “O que é trabalhar e para quem trabalhar? Nosso trabalho é para as pessoas, ele é o motor central do desenvolvimento econômico e social e as pessoas são o elemento dinâmico que precisam ser ao mesmo tempo beneficiárias e protagonistas das políticas de saúde, com inclusão social de forma econômica e cidadã”, concluiu.
Formação e trabalho para a transformação social
A coordenadora da Escola Nacional dos Farmacêuticos, Silvana Nair Leite, abriu sua participação perguntando aos presentes se “no Brasil nós temos farmacêuticos em número suficiente, se temos demais, ou temos de menos?”. Para responder, é preciso considerar quais os parâmetros e a partir de qual perspectiva econômica e social se está considerando esses dados.
Nessa discussão, esclarece, há interesses de todos os tipos envolvidos, e que nem sempre são convergentes: interesses do setor privado na educação, do mercado, a efetiva demanda por serviços. É preciso avaliar a demanda por serviços e a projeção de aberturas de vagas de trabalho. “Os interesses do setor econômico da educação na abertura de cursos da área da saúde é uma projeção de mercado, econômica. Além da oferta, a demanda por serviços de saúde organizados cumpre um papel importante nesse equilíbrio”, explica.
Silvana, dialogando com o final da intervenção da Maria Eugênia, disse que “o trabalho em saúde é essencial à vida humana” e precisa, portanto, atender às necessidade de saúde, “que são determinadas no local”. Por isso, continua, “a formação em saúde tem que partir das necessidades daquele país que deve gerar serviços, tem que ter responsabilidade social para se definir que competências esses profissionais devem ter. É com base nisso que a educação em saúde deve ser planejada”.
A coordenadora da Escola Nacional dos Farmacêuticos, ao falar do papel do trabalho, ressalta que o reconhecimento da profissão farmacêutica está relacionada à promessa do que nosso trabalho pode realizar e de qual impacto que ele efetivamente tem para a melhoria da qualidade de vida das pessoas. “Dependendo do tipo de promessa que se faz, do que a gente consegue cumprir como resultado da nossa mão de obra, e de como nós comunicamos para a sociedade o nosso fazer, resultará o valor que a gente vai ofertar para a sociedade, e portanto como nosso trabalho será reconhecido”.
“A que interesses atende o trabalho do farmacêutico? Às necessidades e demandas socialmente construídas ou apenas a novos mercados e novos modelos de negócios?”, questionou Silvana. “Nosso serviço tem que ser reconhecido pela sociedade como importante para melhorar a qualidade de vida das pessoas, senão ele não se sustenta como algo que precisa ser valorizado. E ao não se sustentar na sociedade como algo que vai ter impacto na vida das pessoas ele não vai se manter”, alerta.
Silvana também fez breve abordagem sobre os impactos da revolução 4.0 na formação e no trabalho do farmacêutico. Para ela, é preciso avaliar como a inclusão das novas tecnologias podem reduzir a jornada ou melhorar condições de trabalho, como utilizar o tempo para qualificar os serviços. Ou se essas tecnologias vão gerar mais desemprego. O importante é que o farmacêutico esteja formado para ser produtor de novas tecnologias, que sejam tecnologias adequadas para resolver problemas e demandas da nossa sociedade. Os farmacêuticos não podem ser meros consumidores da revolução tecnológica e esperar pacatamente os possíveis efeitos negativos sobre a profissão. “Temos que nos questionar para que e para quem são essas tecnologias”, alerta.
E este debate está estreitamente relacionado com o tipo de formação que está sendo oferecida. “O sistema formador não está preocupado com o processo de trabalho do profissional que ele forma”. No caso particular do ensino de Farmácia, Silvana ainda levanta a preocupação com a forma como as Novas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Farmácia serão traduzidas na prática. “A formação por competências, se não feita cuidadosamente, pode levar a formação de profissionais que estarão habilitados apenas para realizar tarefas. Um profissional capaz de cumprir tarefas é um profissional tecnicista, sem nenhuma capacidade de desenvolver novas habilidades, e portanto não tem capacidade de agregar valor ao seu trabalho e desenvolver uma perspectiva mais avançada para a sua profissão. E num contexto de revolução 4.0, onde temos que ser produtores de novas tecnologias e não sermos apenas consumidores de novas tecnologias, isso é um problema de formação”, alerta Silvana.
Trabalho e formação, avaliação para garantir a qualidade
Para fazer a mediação dos temas para o âmbito da formação deste debate, o diretor de relações Institucionais da Fenafar, Rilke Novato, trouxe algumas reflexões sobre as dificuldades para o exercício da profissão farmacêutica, em particular para os recém formados, nas pequenas drogarias do interior, nas periferias, onde existe uma complexa relação entre o proprietário da farmácia e até entre os balconistas e o farmacêutico que chega.
Ele também trouxe para o debate um tema que tem sido bastante controverso na categoria que é a oportunidade de se adotar ou não um exame de proficiência para o exercício da profissão. Esse assunto foi pautado recentemente pelo Conselho Federal de Farmácia e na opinião de Rilke precisa ser vista com muito cuidado. “Qual seria o parâmetro para isso, a prova da OAB?”, pergunta.
Segundo dados apresentados por Rilke, há 1.180 cursos de Direito no país, aproximadamente 1.300 advogados ingressam no mercado de trabalho todo ano. “Temos conhecimento de cursos que foram impedidos de abrir novas vagas, mas nenhum curso de Direito foi fechado no Brasil por oferecer um ensino precário. Então, se for com base na provinha da OAB, não justifica nós discutirmos algo semelhante para a farmácia. O que precisamos fazer para debater a qualidade dos cursos de farmácia e fazer uma discussão séria sobre o sistema nacional de avaliação do Ensino Superior”.
Por fim, Rilke também relata como a relação entre indústria e mídia, com a publicidade de medicamentos, é um elemento que precisa ser considerado na discussão do cotidiano do trabalho do farmacêutico. “É nossa função como profissional esclarecer publicidades que beiram à irresponsabilidade, ou produtos que são anunciados como benéficos para a saúde mas que na verdade causam problemas à saúde”, disse lembrando alguns exemplos como a ritalina, o biotônico Fontoura, o merthiolate.
Por Renata Mielli, do Espírito Santo